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A padaria

January 30, 2025
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O Sr. João tinha uma pequena padaria. Fazia, com as suas próprias mãos, o seu pão com rigor, higiene e cuidado, utilizando sempre a receita que o seu pai lhe havia passado e que guardava na memória e no coração como um tesouro.

Sentia-se orgulhoso da sua profissão, afinal, o pão é por Deus e, tal como no ditado, ele precisava daquela rotina como de pão para a boca.

Lembrava-se de acompanhar o seu pai no ofício, ia para as traseiras ajudar a amassar o pão, sentava-se no balcão e ficava a sorrir para os clientes, a receber o dinheiro e a fazer os trocos. Na sua pequena comunidade, a padaria era um ponto de encontro onde todos paravam e passavam tempo. Contavam-se histórias de tempos idos e dos tempos presentes, sempre com ais pelo caminho, mas também com muita ternura e amizade.

Cresceu a querer manter aquele recanto, aquela lojinha de prateleiras e balcão, aquelas pessoas e aquela cumplicidade. Mas a vida guardava-lhe algumas surpresas que o seu falecido pai jamais teria imaginado que poderiam acontecer.

Ainda se lembra, passados já 20 anos, da primeira vez que ouviu falar do supermercado no seu bairro. A Dona Maria, senhora nos seus 50 anos, que conhecia todos os segredos seus e dos outros, entrou na padaria. Pediu um pão tipo forno de lenha grande e disse: “Oh, Sr. João, já sabe da novidade? Vai abrir um supermercado ali na Rua da Paz, um pulinho daqui, já viu? Têm pão! Olhe, eu tenho cá para mim que isto não vai mudar nada. Sabe como é Sr. João, temos-lhe muita estima… anos de amizade… isto não se vai assim…, mas de qualquer forma, olhe, mais vale prevenir que remediar…”.

O Sr. João pensou com um misto de ansiedade e confiança, até podem ter pão, mas eu tenho os clientes e ninguém faz pão melhor que eu!

O negócio sempre tinha ido bem, a crescente notoriedade e confiança que atingiu no seu bairro, permitiram-lhe comprar uma pequena lojinha no lado e expandir a sua padaria (que antes não tinha mais de 14 m2 de frente) e contratar 4 colaboradores. O Sr. João continuava a fazer o pão, mas já não abria a padaria de manhã, era o Sr. Manel que o fazia. Acabava de cozer o pão às 5h00 da manhã, ia deitar-se para acordar por volta das 10h00 da manhã, tomar descansado o seu pequeno-almoço, ler o seu jornal e então ir calmamente para o trabalho.

As pessoas gostavam de todos os funcionários da padaria, mas preferiam ser atendidas pelo Sr. João, e o Sr. João atendia as pessoas de forma diferente, por muito formados e competentes que fossem os seus colaboradores.

O supermercado lá abriu, ao princípio, não parecia ter grande importância, recordava até divertido, o dia em que “apanhou” a Dona Maria a sair das compras com um saco de pão na mão. Desculpou-se como pôde: “Oh, Sr. João, sabe como é… nada substitui o seu pão, mas olhe, estava com pressa, vou a casa da minha filha, já não tinha tempo de passar na padaria, tinha de fazer estas comprinhas e olhe…”

Com o passar do tempo, abriram mais supermercados e, ainda que devagarinho, começou a notar uma quebra de movimento, uma diminuição de caixa, lutava para não associar essa quebra aos supermercados, e decidira-se justificar antes a falta de movimento com a crise que se instalou no país. Para piorar a situação, os preços do pão teimavam em baixar, o estado teimava em controlar as receitas, menos sal, menos açúcares…

Por esta altura, o Rui, seu filho, acabava os estudos, mas não arranjou emprego, licenciou-se em gestão e acabou por ir trabalhar no negócio do pai. O Rui trazia umas ideias inovadoras para o negócio, falava em associarem-se a um franchisado internacional muito conhecido que lhes permitiria usufruir de algumas parcerias já negociadas, farinha mais barata, marketing para as montras e para o interior da loja, site para a padaria, novos tipos de pão, com sementes, com beterraba, de espelta, de aveia, enfim…

O Rui ia falando entusiasmado, destas oportunidades, em como a padaria lá de cima já tinha feito o mesmo e em como parecia estar a funcionar. Mas o Sr. João agarrava-se às suas tradições, às suas raízes, ao que sempre tinha feito e ao quanto isso lhe tinha já permitido alcançar.

A equipa também não ajudava, não viam o Rui como alguém a considerar. Porque o fariam? Claramente não sabia nada de pão, não tinha, como eles, trabalhado anos na padaria… Porque haveriam de ter em conta o que ele dizia, como se fosse possível que pelo simples facto de fazerem montras bonitas viesse mesmo alguém comprar mais pão!

Além disso, eles é que conheciam os clientes, isso até pode funcionar na padaria lá de cima, os clientes são diferentes, mas aqui…hum! E assim iam… levando pouco a sério, sorrindo com paternalismo ao Rui e às tentativas que ia fazendo para modernizar a loja.

O bairro que era envelhecido começou a receber gente mais nova, as casas foram sendo recuperadas e a vida regressou, mas parecia ter regressado de forma diferente, as crianças não brincavam nas ruas, os pais não compravam nas lojas locais. Estavam sempre atarefados de um lado para o outro e viam-se cada vez mais carrinhas de supermercados a entregar compras diretamente na porta das pessoas.

Outra moda inesperada, eram as tendências naturais, a alimentação saudável, as dietas keto, atkins, paleo e afins que pareciam abolir e diabolizar o pão. Para os que continuavam a preferir o pão, havia as máquinas de fazer pão em casa, pareciam uma epidemia, as farinhas eram compradas no supermercado e cada vez mais o movimento caía.

O Sr. João chegou a um ponto em que teve de reduzir os seus funcionários e alargar o horário. Começaram os problemas com as escalas e com a moral das equipas. Os melhores colaboradores saíam, houve até quem saísse para trabalhar na padaria lá de cima que tanto haviam criticado.

Outro colaborador, o Sr. Manuel que abria a loja saiu até para trabalhar numa empresa de farinhas, como comercial, conhecia o negócio e sabia criar boa relação com os donos das padarias. Tinha carro, telemóvel e um salário melhor.